A subversão da justiça e a proximidade do poder

Recentemente, uma polêmica agitou a comunidade judaica brasileira: até que ponto deve haver alinhamento automático entre as entidades representativas da comunidade judaica local e os governos com os quais nos relacionamos, seja ele brasileiro ou israelense? 

O relacionamento com governos é uma questão recorrente na vida judaica, presente em várias das nossas comemorações: Purim, Pessach e Chanucá celebram a forma como judeus conseguiram se livrar de situações opressivas no relacionamento com o poder da época; datas adicionadas mais recentemente ao calendário, como Iom haShoá e Iom haAtsmaut, refletem aspectos contemporâneos dessa questão.

A relação com a autoridade estabelecida está no centro das questões levantadas pela parashá desta semana. Iossef, o filho vendido como escravo por seus irmãos e que tornou o vice-rei do Egito, havia plantado evidência de que Biniamin, seu único irmão de pai e mãe, havia roubado uma taça de prata da sua casa— agora, os irmãos tentam convencer o vice-rei a prender outro irmão, mas permitir que Biniamin retorne à casa de seu pai. A Torá não relata os motivos de Iossef, mas claramente coloca os irmãos à mercê da sua vontade.

No processo investigativo brasileiro, não são raras as acusações de evidências plantadas ou forjadas, especialmente contra os segmentos mais vulneráveis da sociedade. A subversão do processo legal tem levado à deterioração dos níveis de confiança nas instituições da justiça e a que cada grupo passe a buscar atalhos que garantam a execução da sua percepção do que é certo ou o seu próprio favorecimento.

Conforme a história da parashá progride, Iossef revela sua verdadeira identidade aos irmãos e os convida para se mudarem para o Egito, juntamente com seu pai, para escaparem da seca intensa que afligia toda a região. Como familiares do vice-rei, os filhos de Iaacov receberam terras entre as melhores do reino em um momento em que a população egípcia, também afligida pela seca, era obrigada a abrir mão de seus animais e de suas terras para poderem ter o que comer.

O paralelo com a realidade política brasileira, novamente, não poderia ser mais direto. Infelizmente, nossa tradição tem sido de que a proximidade com aqueles que ocupam o poder garante privilégios indevidos. Em um cenário no qual a garantia dos direitos legais não se dá pela ordem institucional, mas pela proximidade àqueles que detém o poder, ganha força a tese que defende alinhamentos comunitários automáticos e para a qual posicionamentos críticos são perigosos.

A tradição judaica, no entanto, é crítica de alinhamentos automáticos com qualquer governo e expressa orgulho em questionar até mesmo Deus, a autoridade suprema. Nossos textos enfatizam a importância de um processo de justiça isento e expressam ambiguidade com relação à proximidade daqueles que detém o poder, reconhecendo que dependemos deles, mas receosos de que a proximidade seja contraproducente. Antes de buscar resultados imediatos, me parece que a atuação comunitária judaica deve se pautar pela busca desses valores e pelo fortalecimento das instituições democráticas e da ordem institucional. 

Que neste shabat possamos sonhar com um Brasil mais justo e democrático e que neste 2020 possamos caminhar, juntos, nesta direção.

Shabat shalom,
Rogerio Cukierman