Nossa memória tem a capacidade interessante de suavizar os sobressaltos pelos quais passamos ao longo de nossas vidas. Como se fosse uma lixa potente tratando de alisar a textura de um móvel áspero, vamos, ao longo dos anos, lembrando de versões mais amenas de conflitos, aumentando os papéis que tiveram as pessoas que amamos, diminuindo nossas próprias falhas. É uma ferramenta importante para que consigamos continuar vivendo depois de termos passado por episódios especialmente difíceis — na sua falta, continuaríamos recordando traumas, remoendo mágoas, vivendo no arrependimento. Tal qual uma obra literária ou um filme “baseados em fatos reais”, nossa memória mantém um pé naquilo que realmente aconteceu, mas com o outro busca aliviar o ônus de vivermos permanentemente com essas lembranças.

De um tempo para cá, no entanto, essa característica da nossa memória tem sido dificultada pela quantidade de registros que vamos deixando das nossas experiências e interações. De que adianta a memória suavizar um conflito se basta uma visita às mensagens do aplicativo para nos lembrarmos exatamente da dor que tínhamos sentido? Quando cometemos um deslize, os registros nas redes sociais não permitem que nossa memória o registre em tons mais suaves do que tinha originalmente. Tudo que escrevemos, fotografamos e filmamos está indexado pelas ferramentas de busca e a um clique de distância de quem procura saber quem somos, ainda que já não sejamos a mesma pessoa que produziu ou aparece nessas peças. Não só para presidentes que o pedido “esqueçam o que escrevi” já não é mais possível — tudo o que escrevemos, seja um artigo ou um status, se torna permanente. 

Quem consegue viver com a responsabilidade perpétua por cada ato desatento? Quem consegue sustentar relacionamentos cujas falhas sempre voltam a nos revisitar como fantasmas?

O shabat desta semana é chamado “Shabat Zachor”, “o shabat em que você é orientado a se lembrar”. Uma das passagens da Torá que leremos neste sábado começa com a instrução “Lembre-se do que Amalek fez com você em sua jornada, depois que você deixou o Egito — como, sem se deixar abater pelo temor de Deus, ele o surpreendeu na marcha, quando você estava faminto e cansado, e matou todos os retardatários em sua retaguarda” e termina ordenando “Portanto, quando Adonai teu Deus te der a segurança de todos os teus inimigos ao teu redor, na terra que o Adonai teu Deus te dá por herança, apague a memória de Amalek de debaixo do céu. Não se esqueça!” [1] A tensão entre a lembrança e o esquecimento fica evidente nessas linhas. Aqui, trata-se da memória de um ato que se cristalizou na tradição judaica como a expressão paradigmática da covardia e do mal. Nessas situações, nas quais o trauma de quem as viveu é evidente, onde fica a nossa conduta: será que nos esforçamos para lembrar e garantir que ações similares nunca mais aconteçam ou garantimos que as esqueçamos, poupando as vítimas de reviver aqueles momentos terríveis?

Como em tantos outros assuntos, não há respostas absolutas que contemplem todas as situações. Em um mundo que registra cada vez mais detalhes do que falamos, do que fazemos, para onde vamos, a sedução de momentos em que possamos de fato esquecer e sermos esquecidos, é tentadora. De outro lado, há a obrigação ética de lembrar para que aprendamos das nossas experiências, garantindo que — individual e socialmente — não caiamos sempre nas mesmas armadilhas. 

Que do encontro do nosso direito ao esquecimento com nossa responsabilidade por lembrar consigamos construir situações em que possamos crescer sem carregar permanentemente o peso do mundo e das nossas memórias nas nossas costas.

 

Shabat Shalom,

Rabino Rogério Cukierman

 

[1] Deut. 25:17-19